sábado, 24 de abril de 2010

Ao passo que caminho
ultrapasso os limites da
verdade
um ponto escuro na alma
um canto obscuro

(em compasso de espera
contemplo as estações
verão, outono, inverno
antes, a primavera)

os dias passam
as horas
os minutos
segundos
a eternidade não
é passiva
estagnada
é tudo
é nada
reflexo da minha ausência
espelho de minha alma
parada no tempo.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

UM

- Um, dois, três...ele disse.

Uns pingos, umas gotas, invadiram o ambiente.


- Um, dois, três...ela disse.


Nenhum pingo, nenhuma gota.

- Quantas portas terei que fechar, quantas janelas terei que cerrar para que você entenda que as tempestades podem vir a qualquer momento?

Lá fora o mar continua impassível, com as ondas lambendo a areia num vai e vem infitino. Apesar do movimento intenso da maré, está muito calmo.

Tudo é muito bonito por aqui. A paisagem exuberante esconde segredos, restos de fantasia. Quando a noite cai, o cheiro da maresia fica mais forte, um abafado morno que gruda nas narinas e faz recordar outras praias, mares distantes, guardados nos recônditos da memória. Como um retrato em preto e branco, já desbotado, um clima de ausência, silenciosa solidão.

- Não tem mais jeito, você não aprende nunca!
- Não mude de assunto, estamos falando de portas e janelas.

Quando construiram a casa quiseram tudo muito aberto, portas e janelas amplas, varanda circundando a casa, uma clarabóia para deixar entrar a luz natural. Agora ela quer tudo fechado. Perdeu aquela confiança que tinha no tempo firme, ensolarado, nas noites pontilhadas de estrelas, da lua que rasgava o céu sem medo.

Da varanda ela observava as constelações, tentava ver os signos no céu, identificar o movimento das estrelas, ver nelas, as mudanças de estaçao, e durante as tardes quentes, o solstício e o equinócio.

Ele não sabe ao certo o que aconteceu. Porque essa teimosia enclausurada.


Ontem ela acordou e disse que precisava ir até uma serraria. Queria comprar tábuas para pregar nas portas e janelas. Jogou uma lona preta por cima da clarabóia.

- Acho que o que está apagando é a sua luz interior...


quinta-feira, 25 de junho de 2009

MINI CONTOS URBANOS – VI


Enforcado

O dia transcorria normalmente. No cruzamento mais famoso da grande metrópole, a fauna se movimentava com rapidez e sofreguidão. Cada qual com seus anjos e demônios, cada qual com seus devaneios.

A São João com a Ipiranga sempre foi um mar de gente e continuará sendo por muito tempo. O estranho é que existe um certo fascínio naquele movimento todo, nas pessoas que insistem em atravessar de um lado para o outro, mesmo sem saber para aonde estão indo. “O caminho se faz à medida que se caminha”. O destino é incerto mas a esquina é mais do que certa.

Frases soltas no ar, aqui e ali:

- Vou almoçar hoje no Bar Brahma, faz muito tempo que não vou lá…

- Essa merda de trânsito ainda vai me deixar louco…

- Se ela me abandonar de vez…..bom, vou tomar um suco na do outro lado da esquina…

Naquele burburinho todo, de repente me vi dependurado por um dos pés bem no meio da São João com a Ipiranga. Era eu mesmo, de ponta-cabeça olhando tudo aquilo pelo avesso!


Alguma coisa acontece no meu coração - parafraseando a música que imortalizou o local - meus batimentos cardíacos estão bem acima do que é considerado normal. Estou agitado. Esta visão distorcida da realidade me deixa nervoso. Imobilizado, preso por um dos pés, como em uma carta do Tarô inverossímil, que me faz refletir sobre minha visão do mundo.


Para aonde devo olhar? O que realmente eu quero ver? O mundo virou de ponta-cabeça ou será que sou eu que quero inverter as coisas?


Tenho o resto do corpo livre, uma das pernas, as mãos, o tronco, a cabeça, a mente, o espírito. A corda que me prende é a mesma que me liberta. As pessoas passam por mim como se eu não estivesse lá. A pressa geralmente cega.


Permaneço o dia todo nesta posição incômoda, afinal ser enforcado não é nada agradável. Sempre dá um nó na garganta.


quarta-feira, 24 de junho de 2009

BEIRUT - GULAG ORKESTAR


O som não é tão recente, mas para os meus ouvidos e meus sentidos, sim. Ainda não conhecia o trabalho desta banda que, ao contrário do que sugere o nome, é americana e o seu vocalista, Zach Condon’s vive em Brooklyn, Nova Iorque. O disco traz as influências que Zach sofreu da música dos balcãs e da música cigana. O resultado é inquietante. É uma espécie de folk cigano mas que reúne uma série de influências – ou referencias. Podemos perceber ali traços de um Morrissey, do The Cure ou até mesmo de Antony & The Johnsons e uma certa melancolia que causa bastante estranheza, somada a instrumentos não convencionais no mundo pop. Estas misturas me atraem bastante, como é o caso o irrequieto André Abujamra e seu Karnak, cheio de referencias, não preso a um estilo ou ao padrão rígido das gravadoras. Vale a pena ouvir as tessituras musicais propostas por esta banda, ajudam a limpar dos ouvidos o “lugar comum” que estamos acostumados a encontrar todos os dias no dial.

MINI CONTOS URBANOS – V


Baterista

A manhã começa a tomar forma com os primeiros raios de sol saindo entre os prédios. A grama ainda tem em seu leito gotas do orvalho da noite. O ar é frio, o parque ainda está despertando.


Os passos são curtos, apressados. Os braços agitam no ar as baquetas, batidas vertiginosas que estrondam no silêncio do parque. Ninguém ouve, a reverberação ecoa em silêncio. O chimbal, os pratos, a caixa, o tom, o surdo estão soando no imaginário dele. Ele castiga as peles enquanto anda. Vai improvisando as batidas ao ritmo do rufar do seu coração.


O baterista anda pelo parque e leva com ele todos os ritmos. Onomatopéias sonoras vão se formando em sua cabeça e na cabeça dos outros freqüentadores do parque que cruzam quase todos os dias com aquela cena insólita. Tudo vibra claro e límpido no campo das possibilidades.


Seus passos se apressam enquanto dita o ritmo com as baquetas. Vai contornando as alamedas do parque, absorto em seu improviso. Houve-se um bolero ao longe.

…Sentindo um frio em minh’ alma…
….meu coração traiçoeiro, batia mais que o bongô…


Ele não perde o ritmo, segue impassível buscando um rock, um pop, um reggae, uma jazz session, algo para soar com energia no meio da metrópole que já começa a se congestionar. Buzinas, motores, apitos, freadas, tudo se mistura em um grande zumbido.


A poluição sonora aumenta à medida que a manhã avança. Mas o baterista não tem muito tempo. Seu treino rítmico aeróbico tem hora para terminar. Os sons repercutidos vão perdendo a intensidade.


O parque está entregue novamente aos pássaros e aos diálogos soltos das pessoas que caminham buscando uma qualidade de vida melhor no caos da metrópole. O baterista sai de cena. Vai para casa, para o trabalho, preparar uma sessão rítmica em outra banda, em outra orquestra.

Na partitura da metrópole surge uma pausa.

Silêncio.

terça-feira, 9 de junho de 2009

SIM, HÁ ESPERANZA.


Ontem tive a sorte de ganhar um par de ingressos para assistir ao show de um dos grandes nomes do jazz e do rhythm and blues, uma pessoa que dispensa apresentação, do alto de seus 66 anos de idade. George Benson estava lá com a sua elegância, simpatia e a voz macia, aveludada, e nesta noite mais impostada, para interpretar outro monstro da canção americana, Nat King Cole. Mais de 30 músicos no palco, coral e belas interpretações. É claro que no final do show tivemos a Benson’s Party, onde ele desfiou seus maiores sucessos, mostrando todo o seu talento e virtuose, um ofício que ele começou a aprender precocemente, desde os 10 anos de idade, quando lançou seu primeiro álbum.

Mas antes de Mr. Benson, tivemos Esperanza Spalding. Magrinha, espevitada, com nome sugestivo, dona de uma voz potente e suingada, com um contrabaixo acústico bem maior que ela, Esperanza dominou a cena, abrindo o show para George Benson com simpatia, e muito, muito talento, passeando com desenvoltura por sonoridades que remetem a gêneros como o bolero, o suingue, blues, o soul e a MPB. Aliás ela é fã de MPB e Bossa Nova. A influência da música brasileira é bastante clara em sua obra. Além de cantar em português, arranha um pouco do idioma.

Com seus músicos afinadíssimos, nos brindou com uma versão meio jazzística, meio samba, de Ponta de Areia de Milton Nascimento. Quase sem sotaque, Esperanza mostra que estudou bem a canção bem como a maneira que nossos interpretes usam a voz.


Nascida em Portland, do estado de Oregon, Esperanza começou a tocar violino aos cinco anos de idade. Dez anos depois ela já entrava no mundo profissional da música, se apresentando em clubes da cidade como baixista ou vocalista em bandas de jazz e um grupo de música fusion. Com apenas 24 anos, Esperanza é uma das maiores revelações do jazz e por seu talento deve fazer história. Cantora, contrabaixista e compositora, canta em inglês, espanhol e português e consegue se destacar em um meio quase exclusivo dos homens, com suas composições próprias e seu baixo, que já acompanhou nomes como Pat Metheny e Joe Lovano. Vale a pena ver e ouvir.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

MINI CONTOS URBANOS - IV

A Serpente

Final de tarde. A garoa começa a castigar a metrópole. O asfalto vai criando um creme, mistura da fumaça, da poeira, da fuligem, deixando a pista escorregadia, perigosa.

Em instantes a serpente vai se formando. Seus gomos metálicos se aproximam, com olhos brilhantes e o sinal de alerta, vermelho vivo, brilhando na parte traseira.


A serpente é enorme, parece não ter fim. Dentro dela, milhares de pequenos seres, encolhidos, trancados em seu aparelho digestivo, tentando em vão uma saída. Ela se movimenta lentamente, vai se arrastando pela tarde chuvosa, crescendo em ritmo geométrico.


Os pequenos seres estão se remoendo dentro da grande serpente, impotentes, sem saber como escapar daquela prisão. Vêem vermes de duas rodas passando entre as serpentes, rápidos, velozes e furiosos. O relógio insiste em caminhar, impulsionando as horas, mas o cenário não muda muito. Tudo é caótico, confuso, barulhento.

Ninguém quer perder o ritmo, ninguém quer ficar para trás. Perder a serpente significa perder ainda mais tempo. E lentamente vão se arrastando, com seus tédios, seus sonhos, suas frustrações pelo asfalto molhado.

De repente tudo pára. A serpente está imóvel. Os seres pequenos se inquietam e começam a urrar pelas buzinas estridentes. A serpente vai ficando inquieta, seus gomos metálicos tentam desesperadamente escapar. Ela teme pelo seu destino e prepara-se para dar o bote. Vai tomando cada vez mais corpo, engrossando, para poder engolir tudo a sua volta. O espetáculo é indescritível, tudo está travado dentro de suas entranhas. Nada passa, nada sai, nada se movimenta.

O som de uma sirene vai se tornando cada vez mais forte. A serpente se contorce, abre suas entranhas para dar passagem. A ambulância avança, pára logo à frente. Um acidente, um ferido, uma urgência no meio do caos urbano. A ambulância segue seu caminho, costurando a serpente que vai lentamente retornando a sua forma, comprida, lenta, entediante no breu da noite.