quinta-feira, 25 de junho de 2009

MINI CONTOS URBANOS – VI


Enforcado

O dia transcorria normalmente. No cruzamento mais famoso da grande metrópole, a fauna se movimentava com rapidez e sofreguidão. Cada qual com seus anjos e demônios, cada qual com seus devaneios.

A São João com a Ipiranga sempre foi um mar de gente e continuará sendo por muito tempo. O estranho é que existe um certo fascínio naquele movimento todo, nas pessoas que insistem em atravessar de um lado para o outro, mesmo sem saber para aonde estão indo. “O caminho se faz à medida que se caminha”. O destino é incerto mas a esquina é mais do que certa.

Frases soltas no ar, aqui e ali:

- Vou almoçar hoje no Bar Brahma, faz muito tempo que não vou lá…

- Essa merda de trânsito ainda vai me deixar louco…

- Se ela me abandonar de vez…..bom, vou tomar um suco na do outro lado da esquina…

Naquele burburinho todo, de repente me vi dependurado por um dos pés bem no meio da São João com a Ipiranga. Era eu mesmo, de ponta-cabeça olhando tudo aquilo pelo avesso!


Alguma coisa acontece no meu coração - parafraseando a música que imortalizou o local - meus batimentos cardíacos estão bem acima do que é considerado normal. Estou agitado. Esta visão distorcida da realidade me deixa nervoso. Imobilizado, preso por um dos pés, como em uma carta do Tarô inverossímil, que me faz refletir sobre minha visão do mundo.


Para aonde devo olhar? O que realmente eu quero ver? O mundo virou de ponta-cabeça ou será que sou eu que quero inverter as coisas?


Tenho o resto do corpo livre, uma das pernas, as mãos, o tronco, a cabeça, a mente, o espírito. A corda que me prende é a mesma que me liberta. As pessoas passam por mim como se eu não estivesse lá. A pressa geralmente cega.


Permaneço o dia todo nesta posição incômoda, afinal ser enforcado não é nada agradável. Sempre dá um nó na garganta.


quarta-feira, 24 de junho de 2009

BEIRUT - GULAG ORKESTAR


O som não é tão recente, mas para os meus ouvidos e meus sentidos, sim. Ainda não conhecia o trabalho desta banda que, ao contrário do que sugere o nome, é americana e o seu vocalista, Zach Condon’s vive em Brooklyn, Nova Iorque. O disco traz as influências que Zach sofreu da música dos balcãs e da música cigana. O resultado é inquietante. É uma espécie de folk cigano mas que reúne uma série de influências – ou referencias. Podemos perceber ali traços de um Morrissey, do The Cure ou até mesmo de Antony & The Johnsons e uma certa melancolia que causa bastante estranheza, somada a instrumentos não convencionais no mundo pop. Estas misturas me atraem bastante, como é o caso o irrequieto André Abujamra e seu Karnak, cheio de referencias, não preso a um estilo ou ao padrão rígido das gravadoras. Vale a pena ouvir as tessituras musicais propostas por esta banda, ajudam a limpar dos ouvidos o “lugar comum” que estamos acostumados a encontrar todos os dias no dial.

MINI CONTOS URBANOS – V


Baterista

A manhã começa a tomar forma com os primeiros raios de sol saindo entre os prédios. A grama ainda tem em seu leito gotas do orvalho da noite. O ar é frio, o parque ainda está despertando.


Os passos são curtos, apressados. Os braços agitam no ar as baquetas, batidas vertiginosas que estrondam no silêncio do parque. Ninguém ouve, a reverberação ecoa em silêncio. O chimbal, os pratos, a caixa, o tom, o surdo estão soando no imaginário dele. Ele castiga as peles enquanto anda. Vai improvisando as batidas ao ritmo do rufar do seu coração.


O baterista anda pelo parque e leva com ele todos os ritmos. Onomatopéias sonoras vão se formando em sua cabeça e na cabeça dos outros freqüentadores do parque que cruzam quase todos os dias com aquela cena insólita. Tudo vibra claro e límpido no campo das possibilidades.


Seus passos se apressam enquanto dita o ritmo com as baquetas. Vai contornando as alamedas do parque, absorto em seu improviso. Houve-se um bolero ao longe.

…Sentindo um frio em minh’ alma…
….meu coração traiçoeiro, batia mais que o bongô…


Ele não perde o ritmo, segue impassível buscando um rock, um pop, um reggae, uma jazz session, algo para soar com energia no meio da metrópole que já começa a se congestionar. Buzinas, motores, apitos, freadas, tudo se mistura em um grande zumbido.


A poluição sonora aumenta à medida que a manhã avança. Mas o baterista não tem muito tempo. Seu treino rítmico aeróbico tem hora para terminar. Os sons repercutidos vão perdendo a intensidade.


O parque está entregue novamente aos pássaros e aos diálogos soltos das pessoas que caminham buscando uma qualidade de vida melhor no caos da metrópole. O baterista sai de cena. Vai para casa, para o trabalho, preparar uma sessão rítmica em outra banda, em outra orquestra.

Na partitura da metrópole surge uma pausa.

Silêncio.

terça-feira, 9 de junho de 2009

SIM, HÁ ESPERANZA.


Ontem tive a sorte de ganhar um par de ingressos para assistir ao show de um dos grandes nomes do jazz e do rhythm and blues, uma pessoa que dispensa apresentação, do alto de seus 66 anos de idade. George Benson estava lá com a sua elegância, simpatia e a voz macia, aveludada, e nesta noite mais impostada, para interpretar outro monstro da canção americana, Nat King Cole. Mais de 30 músicos no palco, coral e belas interpretações. É claro que no final do show tivemos a Benson’s Party, onde ele desfiou seus maiores sucessos, mostrando todo o seu talento e virtuose, um ofício que ele começou a aprender precocemente, desde os 10 anos de idade, quando lançou seu primeiro álbum.

Mas antes de Mr. Benson, tivemos Esperanza Spalding. Magrinha, espevitada, com nome sugestivo, dona de uma voz potente e suingada, com um contrabaixo acústico bem maior que ela, Esperanza dominou a cena, abrindo o show para George Benson com simpatia, e muito, muito talento, passeando com desenvoltura por sonoridades que remetem a gêneros como o bolero, o suingue, blues, o soul e a MPB. Aliás ela é fã de MPB e Bossa Nova. A influência da música brasileira é bastante clara em sua obra. Além de cantar em português, arranha um pouco do idioma.

Com seus músicos afinadíssimos, nos brindou com uma versão meio jazzística, meio samba, de Ponta de Areia de Milton Nascimento. Quase sem sotaque, Esperanza mostra que estudou bem a canção bem como a maneira que nossos interpretes usam a voz.


Nascida em Portland, do estado de Oregon, Esperanza começou a tocar violino aos cinco anos de idade. Dez anos depois ela já entrava no mundo profissional da música, se apresentando em clubes da cidade como baixista ou vocalista em bandas de jazz e um grupo de música fusion. Com apenas 24 anos, Esperanza é uma das maiores revelações do jazz e por seu talento deve fazer história. Cantora, contrabaixista e compositora, canta em inglês, espanhol e português e consegue se destacar em um meio quase exclusivo dos homens, com suas composições próprias e seu baixo, que já acompanhou nomes como Pat Metheny e Joe Lovano. Vale a pena ver e ouvir.