sexta-feira, 22 de maio de 2009

MINI CONTOS URBANOS - IV

A Serpente

Final de tarde. A garoa começa a castigar a metrópole. O asfalto vai criando um creme, mistura da fumaça, da poeira, da fuligem, deixando a pista escorregadia, perigosa.

Em instantes a serpente vai se formando. Seus gomos metálicos se aproximam, com olhos brilhantes e o sinal de alerta, vermelho vivo, brilhando na parte traseira.


A serpente é enorme, parece não ter fim. Dentro dela, milhares de pequenos seres, encolhidos, trancados em seu aparelho digestivo, tentando em vão uma saída. Ela se movimenta lentamente, vai se arrastando pela tarde chuvosa, crescendo em ritmo geométrico.


Os pequenos seres estão se remoendo dentro da grande serpente, impotentes, sem saber como escapar daquela prisão. Vêem vermes de duas rodas passando entre as serpentes, rápidos, velozes e furiosos. O relógio insiste em caminhar, impulsionando as horas, mas o cenário não muda muito. Tudo é caótico, confuso, barulhento.

Ninguém quer perder o ritmo, ninguém quer ficar para trás. Perder a serpente significa perder ainda mais tempo. E lentamente vão se arrastando, com seus tédios, seus sonhos, suas frustrações pelo asfalto molhado.

De repente tudo pára. A serpente está imóvel. Os seres pequenos se inquietam e começam a urrar pelas buzinas estridentes. A serpente vai ficando inquieta, seus gomos metálicos tentam desesperadamente escapar. Ela teme pelo seu destino e prepara-se para dar o bote. Vai tomando cada vez mais corpo, engrossando, para poder engolir tudo a sua volta. O espetáculo é indescritível, tudo está travado dentro de suas entranhas. Nada passa, nada sai, nada se movimenta.

O som de uma sirene vai se tornando cada vez mais forte. A serpente se contorce, abre suas entranhas para dar passagem. A ambulância avança, pára logo à frente. Um acidente, um ferido, uma urgência no meio do caos urbano. A ambulância segue seu caminho, costurando a serpente que vai lentamente retornando a sua forma, comprida, lenta, entediante no breu da noite.